Passaram dez anos sobre o chamado Memorando de Namibe para a Paz na Província de Cabinda, assinado por Bento Bembe e o Governo de Angola. Em Agosto também se assinala os acordos de Helvoirt (Holanda) que resultaram na fusão da FLEC-FAC de Nzita Tiago e da FLEC-Renovada de António Bento Bembe.
Dez anos depois, Cabinda continua a ser um assunto proibido nos órgãos de comunicação oficial. Angola varre o assunto para debaixo do tapete como se, com tal atitude, o problema deixasse de existir. Mas não deixa. Aliás, soldados angolanos continuam a morrer nos confrontos em Cabinda.
Recordemos, na íntegra, a intervenção de José Marcos Mavungo na Mesa Redonda sobre a Situação da Paz em Angola, que teve lugar em Janeiro de 2013 em Windhoek, na Namíbia”, e em que dissertou sobre “Cabinda à busca de si mesmo – Os esultados do Memorando de Entendimento de 2006”.
“Como tema, podemos considerá-lo no centro das preocupações dos organizadores desta Mesa Redonda, relevando de maneira particular, a afirmação do Dr. Francisco Kapalu Ngongo, segundo a qual «Angola se encontra numa encruzilhada: ou aborda os actuais dilemas e conflitos latentes, do ponto de vista político, social, económico e cultural, o que poderia aprofundar e garantir uma paz duradoira e um desenvolvimento sustentável, ou ignora os indicadores de alerta de existência de conflitos, e prepara um futuro preenche de apreensões».
Assim, em confronto com a realidade do território de Cabinda, a manutenção da actual relação explosiva do Estado angolano com a população de Cabinda será sempre um verdadeiro barril de pólvora, pronto a explodir. À luz desta situação, a sociedade Civil de Cabinda sente sobre os seus ombros o peso enorme dos desafios do nosso presente. Por isso, tinha que honrar os meus compromissos, já muto antigos, de estar aqui para vos falar do processo de Paz para Cabinda.
Nesta perspectiva, o percurso desta reflexão vai começar por abordar os contornos do conflito e os esforços empreendidos até cá para sua resolução. Em seguida, passarei em revista o Memorando de Entendimento. E, por fim, examinarei as perspectivas de uma paz duradoira para Cabinda. A conclusão nos dará os resultado da reflexão e recomendações.
1. O Conflito em Cabinda: Origens e Esforços de Resolução
A «questão de Cabinda», não surge, desde o princípio e de uma vez por todas, como um problema socioeconómico, ou como o estrénuo contraditor do Direito internacional. Ao contrário, a sua produção, no que tem de essencial, se constitui problemática em torno do direito dos Povos a dispor de si mesmos; pois se é que a “Carta Colonial” fazia uma distinção nítida entre Cabinda e Angola, sendo aquele colocado sob o no. 39 Estado a descolonizar e este sob o no. 35, como explicar que Cabinda seja uma excepção às consequências lógicas advindas deste facto durante o processo de descolonização?
Mais do que um problema jurídico, a tensão entre Cabindas e Angolanos se evidencia também como a resultante de uma identidade imposta pela forca das baionetas, e não a resultante do consentimento mútuo entre ambos os povos, o que levanta o problema da legitimidade da tal imposição.
A maneira de assumir esta problemática pelas partes se cristalizou em expressão eloquente de um conflito e de uma ruptura, a “questão de Cabinda”. Trata-se duma questão, como dizia Francisco Luemba, cuja génese situamos “na sua história remota, enraizando – se nela e apreendendo as metamorfoses que sofreu ao longo da sua evolução histórica “. Três factos fundamentais marcaram esta evolução:
• O Especificidade de Cabinda, que advêm da história – muito antes das invasões dos bakongo, já o território era habitado por povos banto, que, em contacto com a terra e os outros povos que afluíram a região ao longo da história, acabaram por se constituir em três reinos – Macongo, Mangoio e Maloango – com uma identidade histórica própria e uma vontade de vida em comum.
• O Tratado de Simulambuco e a colonização portuguesa: com a assinatura do tratado a 1 de Fevereiro de 1885, Cabinda torna-se Protectorado português. O tratado aparecerá aos Cabindas como garantia da sua independência, da sua soberania e identidade, e da unidade e integridade do seu território; um fundamento inequívoco para a sua autodeterminação e independência. Mas, logo após a assinatura do acordo, as expectativas dos Cabindas se traduzirão em ilusão com a implementação da política colonialista, mesmo se a Constituição Portuguesa de 1933, que vigorou até a descolonização, fazia uma distinção nítida entre Cabinda e Angola .
• Os Acordos de Alvor, assinados a 15 de Janeiro de 1975 , nos quais as partes estipularam no artigo 3º. in fine que Cabinda é parte integrante e inalienável do território angolano, sem o prévio consentimento dos autóctones do Enclave. No dizer de Francisco Luemba, o “pós-Alvor seria praticamente o pós-Simulambuco: esperanças frustradas e dias amargos, de tristeza, luto e dor – no mais absoluto isolamento e no mais completo abandono”.
O desastre da descolonização portuguesa, em especial a assinatura dos Acordos de Alvor, marcará a etapa dum conflito de grandes proporções, com a ofensiva de 8 de Novembro de 1975 e o eclodir de cenários de teatro estratégicos que atingiram o patamar de guerrilha, opondo as tropas governamentais de Luanda e a resistência armada de Cabinda (organizada no seio da FLEC – Frente de Libertação do Enclave de Cabinda).
Com a escalada de violência, a maioria dos Cabindas refugiou-se sobretudo no Congo-Brazzaville, Congo-Kinshasa e Gabão – Libreville. A intensidade do conflito provocou a degradação da situação dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, destruiu o tecido social e as infra-estruturas económicas, ocasionando a pobreza generalizada e o constante clima de repressão e de terror.
Note-se que, muitas vezes, em simulações, os actuais governantes de Cabinda têm fingido encontrar-se com a FLEC, as populações e as elites de Cabinda, e brincado de engrandece-los e escutá-los com boas palavras, para depois mostrar lhes os limites da sua política para Cabinda.
Por exemplo, logo apos independência de Angola, a 16 de Fevereiro de 1976, Agostinho Neto assume o compromisso de solucionar o problema de Cabinda pela via do diálogo. A 28 de Fevereiro de 1976, Agostinho Neto e Mobuto Sese Seko reuniram-se em Brazaville, sob os auspícios de Marien Ngouabi. O primeiro, depois de coagir o segundo a renegar a FLEC e a FNLA e a reconhecer a angolanidade de Cabinda, proclamou por sua vez a especificidade de Cabinda (o particularismo de Cabinda) e prometeu solenemente encontrar para esta uma fórmula de administração. Mas nada foi feito até hoje.
Além de vamos conversar! De Fevereiro de 1991, o presidente José Eduardo dos Santos considerou, em Fevereiro de 2002, que Cabinda seria também ” uma questão a tratar no âmbito da reforma constitucional”. Assim será possível “saber o que é que os angolanos todos querem, qual a sua opinião sobre Cabinda. “Trata-se de uma consulta popular dirigida a todos os angolanos”, afirmou o Presidente angolano. Acresce que o Presidente de Angola prometeu aos Cabindas, em Setembro de 1992, negociações destinadas a determinar se Cabinda é ou não Angola.
Passaram anos, e a realidade provou que as hipotéticas negociações prometidas a contragosto não passavam de simples oportunismo, manobra de diversão ou manipulação. Certo, a história da luta do povo de Cabinda registou canais de diálogo com o Estado angolano, mas os resultados dos encontros se revelaram pouco palpáveis, após tantos anos de “guerra-contínua” em que o Poder político dominante apenas procurou mobilizar uma grande máquina de guerra para esmagar os oponentes.
A história da luta do povo de Cabinda está cheia destes encontros desde os anos 1984: Negociações de Sáfica, entre 1984 e 1985, que culminaram com um cessar-fogo a 16 de Fevereiro de 1985 com as FAPLA, sob a mediação cubana; De Junho a Julho de 1992, O Governo angolano enceta contactos com a FLEC de Luís Ranque Franque e a UNLC de Lumimgu Gimby Carneiro, tendo chegado a um acordo de negociações que deveriam ter lugar em Genebra; a 25 de Fevereiro de 1994, Eduardo dos Santos encontra-se com Nzita Tiago, propõe um cessar-fogo «para iniciarmos negociações conducentes a uma solução do diferendo que nos opõe sobre o território de Cabinda»; Negociações entre a FLEC Renovada e o Governo Angolano, nos anos 1995 e 1996, que acabarão por estender-se à FLEC/FAC.
Em todos estes encontros, a controvérsia da paz está sempre ligada a jogos divisionistas que em todos estes anos serviram aos dirigentes de Luanda. E além de que o principio do respeito da Constituição é em todas estas negociações ilegitimamente posto como absoluto, acontece quase sempre que o governo angolano procura expedientes e pretextos tais como a falta dum interlocutor válido e a desunião dos Cabindas. Por todas estas razões, os encontros e negociações organizadas até cá não deram avanços em direcção à Paz.
Aparentemente, a sociedade civil de Cabinda acordou tarde para os esforços de pacificação de Cabinda. Pelo menos para o seu envolvimento como instituição organizada; pois só foi em 2003 que se criou uma instituição da Sociedade Civil, a Mpalabanda – Associação Cívica de Cabinda, cuja vocação é, entre outras, participar dos esforços tendentes à encontrar uma paz duradoira para Cabinda.
Nos seus compromissos, a Mpalabanda tentará responder à urgência da hora presente (do nosso «kairós»), do contexto epocal: alertará o mundo sobre a existência do conflito em Cabinda e pedirá aos beligerantes a cessarem as hostilidades e iniciarem negociações conducentes a uma solução do diferendo; esforçar-se-á por ser a ponte entre o povo e o político; tomará parte nos encontros de Helvoirt, na Holanda, em esforço de aproximação entre as forças da resistência cabindesa; marcou presença no encontro preparatório da Inter-Cabindesa (Outubro de 2009), em Paris/França, sob os auspícios do Reverendo Pastor Daniel Ntoni-Nzinga, em vista a uma plataforma negocial do conflito; e tentará monitorar os direitos humanos (o corolário da questão de Cabinda), publicando três relatórios – «Um Ano de Dor em Cabinda» (2003), «Cabinda, Reino da Impunidade » (2004) e «Cabinda, entre a Verdade e a Manipulação» (2005).
Mas mesmo essa boa-vontade fracassará. A maldade em tudo isto provém dum facto radical: não haver uma vontade seria do governo de Luanda em se encaixar no próprio destino do povo de Cabinda. E o Memorando de Entendimento para a Paz e a Reconciliação da Província de Cabinda é um exemplo desta perversão.
2. O Memorando de Entendimento
Os princípios fundamentais do “Memorando de entendimento” consagram o respeito da lei Constitucional e as obrigações legais em vigor em Angola; afirmam a aceitação indubitável, pelas partes, pelo facto que Angola é um Estado unitário e indivisível segundo a lei; afirmam que as partes reconhecem que, no contexto nacional da República de Angola, a Província de Cabinda tem uma especificidade que obriga que, no âmbito das disposições legais sobre a administração das províncias, seja adoptado ” um estatuto especial” para a Província de Cabinda.
As partes assentaram em que se chegou à paz e à reconciliação nacional em Cabinda (a Paz veio para ficar), desenvolvendo um discurso sobre “triunfo da vitória sobre todos aqueles que ainda resistiam ao acordo de Namibe. Para o efeito, mobilizaram o apoio da massa à sua cruzada contra os espíritos reticentes e os governos liberais, com o apoio da poderosa imprensa estatal, que dota o acordo de uma natureza arquitectónica bem delineada. Mas a questão de Cabinda não é assim tão simples. O campo de batalha se prolonga até hoje, e provavelmente por um período longo e ainda sinuoso.
Reconheço o cuidado com que as partes do memorando tentaram analisar a questão de Cabinda, ao reconhecerem a especificidade do povo de Cabinda, sinal de que o tema interpela o intelecto humano, em particular aquele do político. Acho, porém estranho, que, depois de discussões sobre o assunto, tenham ignorado, entre outros, os seguintes aspectos: o objecto principal (protectorado português) da “especificidade” do território de Cabinda; o significado político e jurídico do Tratado de Simulambuco, o Protectorado português; e o erro dos Acordos de Alvor, o que teria permitido abordar as verdadeiras diferenças entre Angola e Cabinda.
A palavra “especificidade” de um povo está registada, em bons dicionários, como significando o mesmo que “particularidade”, “identidade” que condensa uma metafísica à altura do intangível, tendo encontrado efectivação histórica nos diversos estádios culturais vividos por esse mesmo povo. Ora, no caso de espécie, não se pode falar do povo de Cabinda sem referência à sua alma e história, em especial das condições da sua integração na nação Portuguesa e dos seus direitos como povo.
Disto segue-se que a aporia no contexto do Memorando de Entendimento é patente: a especificidade do povo de Cabinda é proposta como absoluta para a paz, mas o fundamento aduzido para a natureza do povo, que se pretende defender, é excêntrico. De recordar que, em Julho de 2003, o presidente José Eduardo dos Santos declarou-se sensível às especificidades históricas de Cabinda e às «reivindicações básicas». Porém, a «Vox Popoli» não revela em absoluto aos caudilhos de Luanda o direito de que o povo de Cabinda é portador como povo, nem qualquer disposição geral ou particular que defina o que virá a ser a nova personalidade política, jurídica e administrativa para Cabinda.
Deste modo, ao impor o princípio de só existir um povo, o povo angolano de Cabinda ao Cunene, e de fazer do modelo de integração a única base de diálogo, o pacto firmado a 1 de Agosto no Namibe é, como dirá Carlos Pacheco, «erguido sobre as tábuas ideológicas da arrogância centralista e do desprezo pelos oponentes».
A este respeito, importa sublinhar que o Governo angolano tomou sempre muito gosto pela lógica de esmagar os oponentes pela sua força bruta. Por esta razão, temos a incorporação das forças afectas a Bento Bembe nas Forças Armadas Angolanas (FAA), de entre as prioridades do acordo. A aspiração imediata do regime era assegurar essa força para, apoiado nela, chegar à uma vitória militar sobre aqueles que ainda se constituiriam em «estado de guerra» contra «a vontade das autoridades de Luanda».
A fragilidade do acordo reflecte-se também no ostracismo a que foi votado: a expulsão de instituições e personalidades chaves e prestigiadas ligadas ao próprio processo de paz, ou que, pelo menos se prontificaram a oferecer os seus préstimos ao processo. Mas a expressão mais eloquente deste ostracismo está sobretudo no facto de o Líder Supremo ter confiscado para si o monopólio da «questão de Cabinda» – como uma espécie de segredo de estado – e exclui a possibilidade de conferir ao povo de Cabinda de se pronunciar sobre o seu destino. Mas fá-lo como atitude de necessidade, e não com a cegueira dogmática que impele os outros. Sendo uma herança colonial a conservar, o Governo angolano considera que tudo quanto pudesse ultrapassar os impasses de um diálogo autêntico sobre Cabinda era uma afronta aos próprios deuses do actual figurino sociopolítico e jurídico herdado de uma descolonização desastrosa.
De referir a problemática relacionada com a pessoa que negociou o acordo pelo lado de Cabinda. A faceta obscura das peripécias da sua evasão da Holanda, depois que foi detido na sequência do mandato de captura internacional expedido pelas autoridades norte-americanas, teve um efeito fatal sobre o processo de paz para Cabinda. Procurando tirar vantagens da situação, como o navegante à vela, perito em ventos e suas surpresas, o Governo angolano conseguirá arrastar Bento Bembe pelas espirais do seu discurso demagógico e inevitavelmente forçado a seguir adiante, abraçando a sombra do «único interlocutor válido de Angola no dossier Cabinda».
Notemos que o Memorando de Entendimento para a paz em Cabinda sofre duma contradição interna desde o seu nascimento – dum lado o acordo se apresenta como a libertação da última escravatura, aquela do longo conflito pelo Estatuto especial; mas também em reacção contra os direitos e liberdades fundamentais a paz do Namibe estendeu-se a considerações que interditam opinar sobre ela, instaurando deste modo uma nova era de perseguições republicanas contra todos quantos ousassem questionar as suas clausulas.
O maior escândalo provocado pelo regime a este respeito é o drama dos activistas dos direitos humanos em 2010: foram presos sob pretexto de terroristas por denunciar atropelos à justiça, à liberdade e aos direitos das pessoas e por participarem no processo de Paz para Cabinda, num tempo em que o próprio conceito de denúncia das violações dos direitos humanos e de defesa duma cultura de paz constituem deveres de todo o cidadão, e, por conseguinte, devem merecer o apoio e a protecção dos poderes políticos.
Por outro lado, as partes nas negociações de Namibe assumiram o compromisso de criar condições para acelerar o desenvolvimento de Cabinda, permitindo que as suas populações desfrutem de todas as suas potencialidades, tendo em conta o pressuposto da paz, estabilidade, reconciliação e democracia. Porém, nos termos do no.1, do artigo 7, da Lei n. 26/10 de 28 de Dezembro, o executivo angolano acabará por decretar a cessação da transferência mensal dos recursos financeiros ( dez porcento da receita petrolífera) a favor do Governo Provincial de Cabinda, que se vinha realizando nos termos da Resolução no. 11/92, de 21 de Outubro. Ademais, a Província de Cabinda, que ocupou o segundo lugar na atribuição do Orçamento Geral do Estado em 2007, aparece hoje no 10º. lugar.
Daqui vê-se claramente, um pseudo processo de paz que viciado por preconceitos ideológicos e interesses petrófobos, se estrutura nas busca de uma síntese em torno do status quo, deixando espaço a uma visão irrealista da “questão de Cabinda”. Donde a escassa aceitação popular do Memorando de Entendimento; a afirmação de um activismo oposicionista, que condenou e rachou o acordo como uma imposição arbitrária de Luanda; e o recrudescimento dos confrontos armados no interior de Cabinda.
Assim, Angola deixa a situação na delonga e investe na solução militarista, convencida, com razão – na sua própria lógica belicista – que o tempo trabalha a seu favor; esquecendo – se, certamente, do efeito boomerang. Aliás, a história nos ensina que a força não faz o direito, e que guerrilheiros quase nunca são derrotados, que no longo prazo esses «Davids» derrotam «Golias» pela estratégia de saturação.
Hoje, a paz em Cabinda é uma paz dos cemitérios, dos rendidos e mutilados (físicos e espirituais). O diagnóstico da violência e da cultura do medo em Cabinda se traduz numa psicose colectiva, cada um dos Cabinda tem uma história de terrorismo de Estado, particular, para contar sobre brutalidade do regime em Cabinda contra as populações indefesas: prisões, violações, espancamentos, o assassinato e a deportação de um familiar, interdições de ir às lavras e à caça, de legalizar associações de direitos humanos ou de organizar manifestações.
A sinfonização (menção ao Sinfo) e militarização do espaço vital dos Cabindas continua atingindo o aparelho judiciário, estando este corroído pelo autoritarismo do poder político, donde resulta a frequência de prisões arbitrárias e assassinatos. Exemplo cabal disso: no dia 12 de Dezembro de 2011, o corpo de António Zau foi encontrado inerte na mata com sinais visíveis de tortura, pelo simples facto de ter ousado ir à lavra, desobedecendo assim as interdições das instâncias superiores; Venâncio Chicumbo e Cornélio Sambo estiveram sob detenção no Comando da Região Militar de Cabinda durante dois meses, entre Setembro e Novembro de 2012, pelo simples delito de lerem e distribuírem panfletos que condenavam as eleições em Cabinda.
Por outro lado, o salto extrajudiciário dado pelo Governo, aquele que accionou a ilegalização da Mpalabanda em Julho de 2006, inscreve-se nesta lógica do autoritarismo do poder político sobre a razão jurídica – pois o Tribunal Provincial de Cabinda não teria ousado formular a hipótese da extinção desta associação, se na consciência do Juiz não tivesse encontrado a sua realização viva como sendo uma ordem das instâncias superiores.
No plano socioeconómico, o desenvolvimento tão propalado pelo regime não passa do decalque do Plano Calabube , indevidamente gerido pelos sucessivos governos que passaram por Cabinda desde os anos noventa. Com efeito, mal um governador chega a Cabinda cai adormentado em negócios locais e aplica-se em aterrorizar pela força das baionetas os negociantes e activistas locais que se manifesta inconformados com obscenidades, torpezas e a má gestão dos planos de desenvolvimento local.
O mal-estar que provoca esta situação é enorme. A indústria petrolífera gera milhões em Cabinda; mas a maioria da população vive em pobreza abjecta. Cabinda está asfixiado, com uma rigorosa tempestade que causa muita crise; obstáculos ao seu desenvolvimento industrial e comercial; os serviços de infra-estruturas básicas de água potável, electricidade e saneamento mal funcionam; e o empobrecimento da população autóctone. O empresariado local encontra-se empobrecido pela irracionalidade duma governação que o discrimina. O sector de saúde queixa-se de quase tudo (material gastável, medicamentos para primeiros socorros, soros, etc.), para além do salário de miséria dos agentes de saúde.
A nível da comunidade internacional, como diz Orlando Castro: «”a passividade também é plena, para além de atávica, Só Manuel Monteiro teve a coragem de dizer em relação a Cabinda que ” no plano das relações internacionais reina o primado do cinismo” e que ” as considerações de justo ou injusto dependem das épocas, das circunstâncias e até dos interesses materiais”».
Nota-se aqui a dimensão histórica e cultural da questão de Cabinda, ao seu enredamento nos interesses sociais, políticos e de poder, o possível carácter alienante da petro-cultura como sintoma da patologia das instituições sociopolíticas dos nossos estados minados pelos interesses petrolíferos. No passado, era a escravatura colonial, hoje não há mais negros para comercializar no mercado de Malembo, mas há o petróleo de alta qualidade, que jorra profusamente das plataformas de Cabinda.
É, assim, que o petróleo alimentou em Angola todos os vícios políticos possíveis: belicismo cultural, corrupção e falta de transparência na gestão da coisa pública, despotismo e estratégias escudando no simulacro do diálogo e de uma paz.
Donde, a necessidade superar os obstáculos e as contradições do memorando de Namibe.
3. Para Além do Memorando: Exigências de uma Paz Duradoira
Se é que a questão de Cabinda surgida em 1885 aquando da conferência de Berlim não encontrou solução até hoje, é porque as políticas da sua gestão ao longo destes cento e trinta e oito anos às quais ela se ataca permaneceram sempre pobres ao reprimirem o testemunho da consciência moral, revelando-se assim incapazes de cultivar a cultura da paz e, por conseguinte, de fazer justiça às populações de Cabinda.
O discurso político nunca esteve em condições de ir ao encontro das disposições legítimas das populações de Cabinda ou, pelo menos, de instaurar uma sociedade democrática e de direito, na qual se respeita o Direito e as liberdades fundamentais, se aceita opinião contrária e a identidade do povo de Cabinda.
O diálogo tão propalado pelo regime desde a acessão de Angola à independência tem sido duramente abalado pela violência política – onda de detenções, fuzilamentos, torturas e desaparecimentos com que o regime tenta combater toda a oposição à sua política em Cabinda.
O governo angolano apresentou a sua mensagem ao mundo, parecendo de certa forma fechá-la nos estreitos limites dos seus interesses políticos e económicos em Cabinda. É o conflito do direito com o político, num ser político sacudido entre os apetites suscitados por um labirinto rico em matérias-primas, sobretudo o petróleo, e as exigências do humanismo jurídico. É por isso que no Memorando de Entendimento de 2006, assim como nos Acordos de Alvor, a sociedade cabindense, de facto, desnudou-se totalmente da «sua soberania como povo».
Hoje, o conflito é uma realidade. O presente malogro do povo de Cabinda tal como se constituiu desde a assinatura dos Acordos de Alvor – e mesmo, em certa medida, desde a colonização portuguesa – provoca a necessidade de um novo figurino socio-político para Cabinda que todos aguardam, uns com angústia, outros cheios de esperança.
As politicas seguidas até cá não servem, é necessário outra geração de políticos e de politicas, que pensa mais no bem das populações de Cabinda do que no seu próprio bem, que abandona as políticas centralistas-estalinistas; que reconheça a legitimidade das forças da resistência de Cabinda; que abdica de restrições na mesa de negociações; e que se engaje num processo de paz para Cabinda fundada na justiça e dignidade dos povos.
O respeito por esta dignidade começa pelo reconhecimento e pela tutela do estatuto ontológico-jurídico do povo de Cabinda, do seu direito a viver como povo e de fazer escolhas sobre o futuro dos seus filhos. Pelo que não se pode continuar reprimir o testemunho da própria consciência moral, renegando a Liberdade e a Dignidade de todo um povo.
Disto segue-se, finalmente, que não se pode continuar a fazer guerra em Cabinda para ficar com o petróleo, afogando os legítimos desejos das populações deste território. O povo de Cabinda deve ser privilegiado para viver normalmente como povo.
O problema actual consiste em encontrar princípios sólidos conformes com a verdade sobre Cabinda, sobre o sentido da vida e do destino das suas populações, e adoptar consensos a partir dos quais se acabará com o conflito armado e se fará justiça ao povo de Cabinda. Daqui a necessidade para Angola de ter uma atitude de contrição perante “fraude” contida nos Acordos de Alvor que estipulou a apropriação do enclave de Cabinda e a sua integração no “espaço-território” de Angola ao arrepio da Constituição portuguesa de 1933.
Finalmente, a paz em Cabinda precisa de um fundamento estável, não relativo, não aviltado. E a única solução sensata para construir a paz autêntica para Cabinda é um diálogo franco e aberto, esse diálogo que, partindo do real subjacente à “questão de Cabinda” vai ao encontro de reconciliação, de fraternidade e de justiça, de dignidade para as populações de Cabinda.
Conclusão e Recomendações:
E,para terminar, devo dizer que a questão de Cabinda é inevitável e irreprimível; envolve cada homem em particular que não renuncie a pensar. E se é que este problema reaparece neste debate, é por que existe. «Não é por pouco se falar dele que ele deixa de existir», dizia Orlando Castro.
Enquanto não houver política que instaure uma verdadeira justiça para Cabinda, não se pode pôr fim ao conflito ainda reinante, pois a actual gestão da especificidade de Cabinda terá sempre o mesmo valor semântico que «alienação», «colonização». Neste contexto, Cabinda será sempre um verdadeiro barril de pólvora: o número daqueles que no nosso meio se chamam FLECs vai aumentar.
Diante desta situação, recomendo:
1) A auscultação das Populações de Cabinda e promover um debate franco e aberto em torno da sua causa, constituindo para o efeito, uma comissão independente integrando elementos das Nações Unidas e da União Africana para conduzir o processo de auscultação;
2) O envolvimento da ONU e da União Africana na resolução da questão de Cabinda. É necessário que a Comunidade internacional assuma as suas responsabilidades nesta questão;
3) A elaboração de uma Agenda de Paz para Cabinda, relatório produzido por uma Comissão Independente de Auscultação das Populações de Cabinda e que descreve a situação actual em Cabinda, os contornos da questão de Cabinda, a evolução das perspectivas de solução do conflito e definir procedimentos susceptíveis de estabelecer uma paz duradoira para Cabinda.
4) A instauração de um clima susceptível de pacificar as consciências, através do respeito pelos direitos humanos e das liberdades fundamentais, da justa partilha da produção e da riqueza acumulada da comunidade e da permanente busca de consensos sobre a questão de Cabinda. Este clima permitiria a reaproximação dos beligerantes, o que por si só constituiria um sucesso de realce;
5) A organização de negociações construtivas e inclusivas sobre o futuro estatuto político e Jurídico de Cabinda.”